O processo legislativo carece normalmente
da presteza necessária para dotar o ordenamento legal de uma constante actualidade
em relação à evolução da vida em sociedade. A identificação de novos fenómenos
sociais carecedores de regulação legal está normalmente a cargo da doutrina
jurídica, estudando-os e conferindo-lhes um tratamento técnico que posteriormente
pode ser aproveitado no âmbito do processo legislativo.
No caso do Brasil, a transição
constitucional de 1988, que deu origem à actual Constituição Federal, foi
impregnada da ideia de transformar o Brasil num Estado Democrático de Direito,
conforme expressamente consta do respectivo artigo 1.º:
“A República Federativa do Brasil,
formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal,
constitui-se em Estado Democrático de Direito <…>.”
Um dos corolários do Estado
Democrático de Direito é o respeito pelos direitos e garantias fundamentais,
cujo emblema constitucional é o artigo 5.º da Constituição Federal, que estabelece
o seguinte no seu caput:
“Todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade <…>”
Sucede, porém, que a nova
realidade constitucional não foi acompanhada de uma sistemática renovação infraconstitucional,
subsistindo um ordenamento legal constitucionalmente anacrónico, cuja correcção
tem vindo a ser feita conjunturalmente, quer no âmbito legislativo, quer no
âmbito judicial.
Um dos casos paradigmáticos da
situação acima referida é representado pela Lei n.º 6.816, de 19/08/1980,
também conhecida por Estatuto do Estrangeiro, anterior à Constituição Federal
de 1988, mas ainda em vigor, em grande parte, com o texto original.
No contexto do Estatuto do
Estrangeiro, ficou sobejamente conhecido o caso do jornalista americano Larry
Rohter, correspondente no Brasil do jornal “The New York Times”, cujo visto –
rectius, registro – foi cancelado por decisão do Ministro da Justiça, com
fundamento na inconveniência da sua presença em território brasileiro, na
sequência de um artigo publicado naquele periódico que aludia a hábitos de
consumo de bebidas alcoólicas do então Presidente da República Federativa do
Brasil.
Foi então impetrado Habeas Corpus
junto do Superior Tribunal de Justiça a favor do referido jornalista, no âmbito
do qual foi proferida decisão liminar de concessão de salvo-conduto para
permanecer no Brasil enquanto não houvesse decisão final sobre o mérito da
causa.
Na base da fundamentação da
decisão liminar de permitir a permanência do jornalista no Brasil até à decisão
final de mérito estiveram os incisos IV e IX do citado artigo 5.º da
Constituição Federal, que concretizam a norma constante do respectivo caput ao
nível da liberdade de manifestação do pensamento e da liberdade de expressão
intelectual, artística, científica e de comunicação. Importa transcrever
parcialmente a decisão em causa:
“O ato de concessão ou revogação
de visto de permanência no país de estrangeiro, em tese, está subordinado aos
interesses nacionais (art. 3º da Lei nº 6.815/80). O visto é ato de soberania.
Pergunto-me, porém, se uma vez concedido poderá ser revogado pelo fato do
estrangeiro ter exercido um direto assegurado pela Constituição, qual o de externar
a sua opinião no exercício de atividade jornalística, livre de quaisquer peias?
Estaria tal ato administrativo a salvo do exame pelo Judiciário?
Neste caso penso que não. É que
no Estado Democrático de Direto não se pode submeter a liberdade às razões de
conveniência ou oportunidade da Administração. E aos estrangeiros, como aos
brasileiros, a Constituição assegura diretos e garantias fundamentais descritos
no art. 5º e seus incisos, dentre eles avultando a liberdade de expressão. E dúvidas
não pode haver quanto ao direto de livre manifestação do pensamento (inciso IV)
e da liberdade de expressão da atividade de comunicação, "independentemente
de censura ou licença" (inciso IX).”
Tal episódio não apenas revelou o
anacronismo do Estatuto do Estrangeiro – agravado por uma decisão
administrativa arbitrária –, como também possibilitou um debate legislativo
representado pelo Projeto de Lei do Senado n.º 141/2004.
O PLS n.º 141/2004 visa
concretamente a alteração dos artigos 26 e 65 do Estatuto do Estrangeiro, por
forma a tornar a decisão de cancelamento de visto mais objectiva, subtraindo-a
a tentações de abuso de poder ou arbitrariedade.
A redacção actual desses artigos
é a seguinte:
“Art. 26. O visto concedido pela
autoridade consular configura mera expectativa de direito, podendo a entrada, a
estada ou o registro do estrangeiro ser obstado ocorrendo qualquer dos casos do
artigo 7º, ou a inconveniência de sua presença no território nacional, a
critério do Ministério da Justiça.
§ 1º O estrangeiro que se tiver
retirado do País sem recolher a multa devida em virtude desta Lei, não poderá
reentrar sem efetuar o seu pagamento, acrescido de correção monetária.
§ 2º O impedimento de qualquer
dos integrantes da família poderá estender-se a todo o grupo familiar.”
“Art. 65. É passível de expulsão o estrangeiro que, de
qualquer forma, atentar contra a segurança nacional, a ordem política ou
social, a tranqüilidade ou moralidade pública e a economia popular, ou cujo
procedimento o torne nocivo à conveniência e aos interesses nacionais.
Parágrafo único. É passível, também, de expulsão o estrangeiro
que:
a) praticar fraude a fim de obter a sua entrada ou
permanência no Brasil;
b) havendo
entrado no território nacional com infração à lei, dele não se retirar no prazo
que lhe for determinado para fazê-lo, não sendo aconselhável a deportação;
c) entregar-se à vadiagem ou à
mendicância; ou
d) desrespeitar proibição especialmente
prevista em lei para estrangeiro.”
No âmbito do PLS n.º 141/2004, a
Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania emitiu parecer em 02/04/2014,
propugnando pelos seguintes pontos:
“- as hipóteses administrativas
de óbice ao visto (impedimento de entrada, de estada ou de registro do
estrangeiro) a cargo do Ministro da Justiça e que se remeta ao Presidente da
República a possibilidade prevista no inciso II do art. 7.º ou da
inconveniência de sua presença no território nacional;
- altere-se o art. 65, incluindo
a ressalva de observância de todos os direitos e garantias fundamentais, e não
apenas de liberdade de imprensa; e
- suprima-se o § 2.º do art. 26,
para que eventual cancelamento de visto com base nesse artigo não se estenda a
todo o grupo familiar.”
Nesse sentido, propôs a referida
Comissão a seguinte redacção para os artigos 26 e 65 do Estatuto do
Estrangeiro:
“Art. 26. O visto concedido pela
autoridade consular configura mera expectativa de direito, podendo a entrada, a
estada ou o registro do estrangeiro ser obstado ocorrendo o previsto nos
incisos I, III, IV e V do art. 7.º, a critério do Ministro da Justiça, ou o
previsto no inciso II do mesmo ou inconveniência de sua presença no território
nacional, a critério do Presidente da República.
Parágrafo único. O estrangeiro que
se tiver retirado do País sem recolher a multa devida em virtude desta Lei, não
poderá reentrar sem efetuar o seu pagamento, acrescido de correção monetária.”
“Art. 65. É passível de expulsão
o estrangeiro que, de qualquer forma, atentar contra a segurança nacional, a
ordem pública ou social, a tranquilidade ou moralidade pública e a economia
popular, ou cujo procedimento o torne nocivo à conveniência e aos interesses
nacionais, sendo resguardados os direitos e as garantias fundamentais.”
…………………………..”
Pronunciou-se também a Comissão
de Relações Exteriores e Defesa Nacional, de cujo relatório importa transcrever
o seguinte:
“Notoriamente, a Lei n.º 6.815,
de 19 de agosto de 1980, conhecida por Estatuto do Estrangeiro, advinda de
período autoritário, é permeada por dispositivos que permitem arbitrariedade ou
criam dificuldades à vida do estrangeiro no Brasil.
Essa sistemática não encontra consonância
com os preceitos adotados pela Constituição Federal de 1988, que adota como
objetivo fundamental da República a construção de uma sociedade livre, justa e
solidária (art. 3º, I), regendo-se nas relações internacionais pela prevalência
dos direitos humanos e cooperação entre os povos (art. 4º., II e IX) e
direcionando a República brasileira para a formação de uma comunidade
latino-americana de nações (art. 4.º, parágrafo único).
Desse modo, não há dúvidas que
certos dispositivos do Estatuto do Estrangeiro devem ser remediados para que
fiquem coerentes com os ditames constitucionais. Entre eles, como nos mostrou o
vergonhoso episódio do jornalista Larry Rohter, estão as regras de competências
para cancelamento do visto de permanência de estrangeiro no território
nacional.”
Considerando o evidente mérito da
PLS n.º 141/2004 e desejando que a mesma venha a ser rapidamente aprovada,
podemos terminar formulando as seguintes conclusões:
- O caso “Larry Rohter” permitiu
expor a desconformidade constitucional dos artigos 26 e 65 da Lei n.º 6.815, de
19/08/1980, e de a submeter a um escrutínio judicial e legislativo;
- De acordo com PLS n.º 4/2004,
na forma da Emenda n.º 1 da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania:
- Os casos
previstos no artigo 7.º, inciso II, do Estatuto do Estrangeiro (“considerado
nocivo à ordem pública ou aos interesses nacionais”) e os casos de “inconveniência
de sua presença no território nacional”, em virtude de serem mais permeáveis a
arbitrariedades, ficam a cargo do Presidente da República, nos termos dos
artigos 65 e seguintes do mesmo Estatuto, sendo salvaguardados os interesses e
as garantias fundamentais;
- O impedimento previsto no artigo 26 do Estatuto do Estrangeiro deixa de ser extensível a todo o grupo familiar.
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