Como se sabe, foram recentemente
publicadas as Portarias do Ministério da Justiça n.º`s 1.351 e 1.371, de
08/08/2014 e 18/08/2014, respectivamente, o que torna oportuno um sintético
comentário ao regime da permanência de estrangeiro no Brasil com fundamento em união
estável.
O relacionamento amoroso entre
duas pessoas à margem do casamento civil constitui um fenómeno social que
adquiriu mais visibilidade a partir da segunda metade do século XX, vindo
gradualmente a ser assimilado pelas convenções sociais. À sua crescente
importância nas relações sociais correspondeu necessariamente uma necessidade
de regular o fenómeno, atribuindo-lhe, desde logo, alguns efeitos jurídicos.
Quanto mais extensos são os efeitos jurídicos atribuídos num determinado
ordenamento jurídico, mais regulados são também os seus requisitos de forma e
de substância.
Neste contexto, pode afirmar-se,
sem grande risco de erro, que no Brasil o grau de formalismo jurídico exigido
para a produção de efeitos da união estável é equiparado ao formalismo jurídico
do próprio casamento civil.
O reconhecimento jurídico da
união estável encontra-se consagrado no artigo 226, § 3.º, da Constituição
Federal, nos seguintes termos:
“Para efeito da proteção do
Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade
familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”
A nível infraconstitucional, o
Código Civil dedica os artigos 1.723 a 1.727 à união estável. Dispõe o caput do
artigo 1.723 da seguinte forma:
“É reconhecida como entidade
familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência
pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de
família.”
Anteriormente ao Código Civil –
de 2002 – já existia a Lei n.º 9.278, de 10/05/1996, que veio regulamentar o
artigo 226, § 3.º, da Constituição Federal. Dispõe o respectivo artigo 1.º da
seguinte forma:
“É reconhecida como entidade
familiar a convivência duradoura, pública e contínua, de um homem e uma mulher,
estabelecida com o objetivo de constituição de família.”
A par da legislação, e
frequentemente à sua frente, tem-se verificado uma produção jurisprudencial que
tendencialmente vai aumentando o grau de equiparação dos efeitos da união
estável aos efeitos do casamento civil.
Neste sentido, o Conselho
Nacional de Justiça emitiu o Provimento n.º 37, de 07/07/2014, estabelecendo
formalidades registrais referentes à união estável. Nomeadamente, após
declarar, no seu artigo 1.º, ser facultativo o registro da união estável
prevista nos artigos 1.723 a 1.727 do Código Civil, dispõe no artigo 2.º que:
“O registro da sentença
declaratória de reconhecimento e dissolução, ou extinção, bem como da escritura
pública de contrato e distrato envolvendo união estável, será feito no Livro
“E”, pelo Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais da Sede, ou, onde
houver, no 1.º Subdistrito da Comarca em que os companheiros têm ou tiveram seu
último domicílio, devendo constar: <…>”
Portanto, a união estável pode
ser formalizada através de escritura pública ou de sentença judicial, não
distinguindo a lei as situações em que a formalização deverá ser efectivada de
uma ou de outra forma, pelo que não pode deixar de se entender que o recurso à
via judicial para a declaração de união estável fica reservado para as situações
de controvérsia acerca da sua efectiva existência.
Não existindo controvérsia acerca
da existência da união estável, a mesma deve ser formalizada através de
escritura pública, a qual, por sua vez, deverá ser registrada no Registro Civil
de Pessoas Naturais.
Todavia, as normas referentes à
obtenção de visto de permanência no Brasil com fundamento em união estável são
bastante mais exigentes no que concerne à sua comprovação. Estamos a falar
concretamente da Resolução Normativa n.º 108, de 12/02/2014, do Conselho
Nacional de Imigração, e da Portaria n.º 1.371, de 18/08/2014, do Ministério da
Justiça.
A RN CNI n.º 108/2014 dispõe
sobre a concessão de visto temporário ou permanente e permanência definitiva a
título de reunião familiar, estabelecendo o seu artigo 7.º que a obtenção de
visto temporário ou permanente com base em união estável está condicionada à
apresentação, entre outros, dos seguintes documentos:
- Atestado de união estável
emitido por autoridade competente do país de procedência do chamado: ou
- Comprovação de união estável
emitida por juízo competente no Brasil ou autoridade correspondente no
exterior.
Por sua vez, o artigo 8.º
estabelece que, na ausência dos documentos acima referidos, a comprovação da
união estável poderá ser feita mediante a apresentação dos seguintes
documentos:
- Certidão ou documento similar
emitido por autoridade de registro civil nacional, ou equivalente estrangeiro;
- Declaração, sob as penas da
lei, de duas pessoas que atestem a existência da união estável; e
No mínimo, um dos seguintes
documentos:
- Comprovação de dependência
emitida por autoridade fiscal ou órgão correspondente à Receita Federal;
- Certidão de casamento religioso,
com o tempo mínimo de um ano;
- Disposições testamentárias
registradas junto a cartório brasileiro ou autoridade competente no exterior
que comprovem o vínculo, com o tempo mínimo de um ano;
- Apólice de seguro de vida ou
plano de saúde em que conste um dos interessados como instituidor do seguro e o
outro como beneficiário, com o tempo mínimo de um ano;
- Escritura de compra e venda,
registrada em cartório de registro de imóveis ou perante autoridade competente
no exterior, quando aplicável, onde os interessados constem como proprietários,
ou contrato de locação de imóvel em que ambos figurem como locatários, com o
tempo mínimo de um ano;
- Conta bancária conjunta, com o
tempo mínimo de um ano;
- Certidão de nascimento de filho
estrangeiro do casal.
A conclusão imediata que se
retira dos requisitos documentais acima mencionados, ou seja, para o efeito de
comprovação da união estável no âmbito do processo de obtenção de visto de
permanência no Brasil, é de que em algumas situações tal comprovação se torna
praticamente impossível sem o recurso à via judicial, carecendo o registro
civil de valor se não for acompanhado de outros documentos.
Paralelamente, constata-se o
paradoxo de se atribuir maior força probatória a um atestado de união estável
emitido por autoridade competente do país de procedência do chamado do que à
própria certidão do registro civil brasileiro.
Há poucos dias, a publicação da
Portaria n.º 1.351, de 08/08/2014, veio dar uma nova esperança no sentido da desburocratização
da comprovação da união estável para o efeito do processo de permanência no
Brasil no âmbito do Ministério da Justiça. Com efeito, dispõe o ponto 4. do
respectivo anexo da seguinte forma:
“No pedido de permanência com
base em união estável, solicitada por companheiro de brasileiro ou estrangeiro
permanente, que deseje fixar residência definitiva no Brasil, conforme previsto
na Resolução Normativa n.º 108/14 do Conselho Nacional de Imigração:]
<…>
a) documento hábil que comprove a
existência de união estável, como:
I – atestado de união estável
emitido por autoridade competente do país de procedência do chamado ou;
II – comprovação de união estável
emitida por juízo competente no Brasil ou autoridade correspondente no exterior
ou;
III – apresentação de certidão ou
documento similar emitido por autoridade de registro civil nacional, ou
equivalente estrangeiro ou;
IV – declaração, sob as penas da
lei, de duas pessoas que atestem a existência da união estável; e no mínimo,
dois dos seguintes documentos: comprovação de dependência emitida por
autoridade fiscal ou órgão correspondente à Receita Federal; certidão de casamento
religioso (será exigido o tempo mínimo de um ano para a comprovação);
disposições testamentárias que comprovem o vínculo (será exigido o tempo mínimo
de um ano para a comprovação); apólice de seguro de vida na qual conste um dos
interessados como instituidor do seguro e o outro como beneficiário (será
exigido o tempo mínimo de um ano para a comprovação); escritura de compra e
venda, registrada no Registro de Propriedade de Imóveis, em que constem os
interessados como proprietários, ou contrato de locação de imóvel em que
figurem como locatários (será exigido o tempo mínimo de um ano para a
comprovação); conta bancária conjunta (será exigido o tempo mínimo de um ano
para a comprovação), e certidão de nascimento de filho estrangeiro do casal.
<…>”
Portanto, nos termos da citada
Portaria, a escritura de união estável registrada no Registro Civil de Pessoas
Naturais passaria a ter o mesmo valor da certidão de casamento ou do atestado
de união estável emitido por autoridade competente do país de procedência do
chamado.
Infelizmente, em 19/08/2014, ou
seja, após parcos oito dias da data de publicação da Portaria n.º 1.351, foi
publicada a Portaria n.º 1.371, de 18/08/2014, que veio alterar aquela, sobretudo no que tange aos documentos exigidos para a comprovação da união estável,
passando o mesmo ponto 4. a corresponder a uma reprodução do supra transcrito
artigo 7.º e 8.º da RN CNI n.º 108/2004, continuando-se a exigir documentação
suplementar e de difícil obtenção para acompanhar a certidão do Registro Civil
de Pessoas Naturais.
Em conclusão, parece-nos que os
processos de obtenção de visto e autorização de permanência no Brasil continuam
a ser desproporcionalmente mais exigentes no que concerne à união estável do
que em relação ao casamento, sendo de assinalar uma incompatibilidade das
normas pertinentes da RN CNI n.º 108/2014 e da Portaria MJ n.º 1.371/2014 com
as normas constitucionais e legais que tutelam e regulam a união estável.
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