Na corrente do fenómeno social contestatário
que nos últimos dias tem apresentado significativa expressão em diversas
cidades brasileiras, têm surgido dúvidas sobre a possibilidade de cidadãos
estrangeiros residentes no Brasil intervirem em manifestações ou passeatas e de
opinarem sobre o cenário político e social em que os acontecimentos têm lugar.
Entendemos oportuno divulgar o nosso entendimento sobre este assunto, sob uma perspectiva exclusivamente jurídica.
O artigo 107 da Lei n.º 6.815, de
19 de agosto de 1980, também conhecida como o Estatuto do Estrangeiro, estabelece,
efetivamente, algumas limitações aos estrangeiros presentes no Brasil no que
concerne ao ativismo político.
Para melhor se entender o âmbito
do referido artigo, passamos a citá-lo:
"Art. 107. O estrangeiro admitido no território nacional não pode
exercer atividade de natureza política, nem se imiscuir, direta ou
indiretamente, nos negócios públicos do Brasil, sendo-lhe especialmente vedado:
I – organizar, criar ou manter sociedade ou quaisquer entidades de
caráter político, ainda que tenham por fim apenas a propaganda ou a difusão, exclusivamente
entre compatriotas, de idéias, programas ou normas de ação de partidos
políticos do país de origem;
II – exercer ação individual, junto a compatriotas ou não, no sentido
de obter, mediante coação ou constrangimento de qualquer natureza, adesão a
idéias, programas ou normas de ação de partidos ou facções políticas de
qualquer país;
III – organizar desfiles, passeatas, comícios e reuniões de qualquer
natureza, ou deles participar, com os fins a que se referem os itens I e II
deste artigo.
Parágrafo único. O disposto no caput deste artigo não se aplica ao
português beneficiário do Estatuto da Igualdade ao qual tiver sido reconhecido
o gozo de direitos políticos.”
Desde logo, podemos facilmente constatar
que este artigo não limita diretamente a liberdade de expressão, pelo que a
esse nível não subsistem dúvidas de que os estrangeiros no Brasil não estão
legalmente cerceados na sua liberdade de expressão, nomeadamente no que
concerne à opinião política.
Podemos também ignorar, por ora,
os incisos I e II do citado artigo 107, pois não têm relevância no âmbito da
presente abordagem.
Resta o inciso III, na medida em
que poderá ter alguma aplicabilidade direta à presente situação.
Nos termos do mesmo, conjugado
com o caput, é especialmente vedado
aos estrangeiros no Brasil organizar desfiles, passeatas, comícios e reuniões
de qualquer natureza, ou deles participar, com os fins a que se referem os
incisos I e II do mesmo artigo.
Sucede que a parte final do
inciso III, ao circunscrever o campo de aplicação da norma por referência às
finalidades previstas nos incisos I e II, tem como efeito a redução do respectivo
campo de aplicação, não abrangendo, por consequência, a organização ou a
participação de desfiles, passeatas, comícios e reuniões de qualquer natureza
quando estes apenas tenham como objetivo a expressão de ideias e de opiniões,
ainda que de natureza política.
Maior dificuldade interpretativa
apresenta o próprio caput do artigo 107, dada a amplitude da sua abrangência,
ao expressamente proibir ao estrangeiro admitido no território brasileiro o
exercício de atividade de natureza política e de se imiscuir, direta ou
indiretamente, nos negócios públicos do Brasil.
Com efeito, o conceito de
atividade política é de tal forma vasto que dificulta acentuadamente a
aplicabilidade da norma, pelo que, tendo em conta a natureza das situações
legais especialmente previstas nos incisos I, II e III, e o disposto na Constituição
Federal de 1988, entendemos que o caput
do artigo 107 da Lei n.º 6.815, de 19 de agosto de 1980, não pode ser
interpretado no sentido de restringir o direito à liberdade de expressão e de participação em manifestações, passeatas ou desfiles de natureza política dos
estrangeiros que se encontrem no Brasil.
Com efeito, o artigo 5.º, caput, da Constituição Federal,
consagrando o princípio da igualdade ou da isonomia, expressamente dispõe que:
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: <...>”
No mesmo artigo 5.º, incisos IV,
VII, IX, XVII e LII, estabelece-se, respectivamente, que:
- “é livre a manifestação do pensamento <...>”;
- “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de
convicção filosófica ou política <...>”;
- “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e
de comunicação, independentemente de censura ou licença”;
- “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao
público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião
anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à
autoridade competente”;
- “é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de
caráter paramilitar”;
- “não será concedida extradição de estrangeiro por crime político ou de
opinião”.
Cabe lembrar que a Lei n.º 6.815,
de 19 de agosto de 1980, é anterior à Constituição Federal de 1988, pelo que
nem todas as normas foram recepcionadas pela nova ordem constitucional e muitas
delas exigem, para esse efeito, que se proceda a uma interpretação conforme à
constituição. É o que ocorre, por exemplo, no que tange às previsões legais
limitativas do exercício de determinados direitos por parte de estrangeiros
presentes no Brasil.
Concluindo, em síntese e com base no supra explanado, perfilhamos o
entendimento de que aos estrangeiros presentes no Brasil, mormente aos
residentes, é lícito, por se enquadrar no âmbito de um direito fundamental constitucionalmente
consagrado, emitirem publicamente as suas opiniões, ainda que de natureza
política, sobre a realidade brasileira, bem como de participarem de
manifestações, desfiles ou passeatas, nomeadamente aquelas que têm ocorrido.
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